terça-feira, 19 de janeiro de 2010

SAUDADES II


O MEU PAI

Grupo de amigos, familiares e antigos clientes resolveram fazer uma homenagem ao meu pai, Abílio da Costa Mendes, o que muito me comoveu.

Foi feito um pedido à Câmara Municipal de Lisboa, cidade que o adoptou e de quem ele tanto gostava, para a atribuição do seu nome a uma rua.

Ao que parece a rua escolhida situa-se na nova urbanização do Alto dos Moinhos. É desejo da comissão fazer coincidir a efeméride com a data do seu nascimento, 10 de Abril.

Mais tarde darei notícias das comemorações que se vão realizar integradas nestas celebrações, hoje quero somente relembrar o meu pai, médico pediatra tão querido e respeitado por todos os que com ele conviveram: meninos e meninas que ele acompanhou durante anos e que hoje já são adultos. Iniciou muito novo a clínica pediátrica e chegou a cuidar de três gerações da mesma família.

Diariamente encontro pessoas que se referem a ele, como também ao meu irmão Abílio, com muita saudade, gratidão e amizade.

Pelos consultórios, primeiro na Travessa do Calado e depois na Avenida António Augusto de Aguiar, onde eu e o meu irmão também colaborámos, passaram cerca de vinte mil crianças, todas com fichas registadas no arquivo do consultório.

O meu pai, homem de uma grande cultura humanística, foi além dum clínico prestigiado, um pedagogo e um precursor da nova pediatria. Sempre tratou os seus pequenos clientes, com uma visão holística da medicina, respeitando a sua própria individualidade.

Bebeu os conceitos que orientaram a sua vida nos filósofos dos fins do século XIX e princípios do século XX, assim como nos grandes escritores dessa época. Sofreu a influência dos autores franceses e russos de então, Emile Zola, Roman Rolland, DostoievsKy, Tolstoi. Lembro-me desses livros na sua mesa-de-cabeceira, e também do de escritores portugueses como: Raul Brandão, Fidelino Figueiredo, Aquilino Ribeiro, Miguel Torga e o grupo da Seara Nova com referência especial a António Sérgio.

O grande Mestre que o marcou no campo da Medicina foi sem dúvida Abel Salazar, a quem já chamaram o Leonardo da Vinci português, pela sua cultura humanística excepcional. Quando veio para Lisboa continuou a correspondência com o mestre e publicou inúmeros artigos na revista “Medicina”, órgão da Associação de Estudantes de Medicina de Lisboa, da qual foi director.

Na pedagogia foi influenciado por Maria Montessori, Pestalozzi e pela escola americana de Arnold Gesel com as suas teorias sobre o desenvolvimento infantil.

A escola behaviorista e as experiências de Pavlov também o marcaram tendo criado um esquema de alimentação infantil próprio, contrário ao da escola académica, que constituiu um dos maiores sucessos da sua clínica. Homem de carácter forte, nunca foi influenciado pelas "modas" em medicina. Sempre lutou pela amamentação dos recém-nascidos, durante os primeiros meses de vida, privilegiando o contacto mãe/criança (reconhecido hoje mundialmente) e o hábito duma disciplina de vida, contra a anarquia e a liberdade sem limites, propagada nos anos sessenta e tão criticada actualmente por psicólogos e psiquiatras infantis. Um dos seus grandes sonhos foi a criação de uma "escola de mães".

Abílio Mendes nasceu na Maia, a 10 de Abril de 1911, e era o mais novo de uma fratria de onze; oriundo de famílias humildes tendo o seu pai emigrado para o Brasil.

Foi um autodidacta. A sua irmã mais velha educou-o com carinho, até aos 12 anos, o melhor que pode. Foi só nessa idade que conheceu o seu pai, numa das suas vindas a Portugal.

Como era um excelente aluno, o pai prometeu-lhe pagar os estudos e um curso de engenharia, para mais tarde ir com ele trabalhar na fábrica de cimento armado que tinha no Rio de Janeiro. Começou por se inscrever num curso industrial, mas aos 15 anos escreveu ao Pai manifestando o desejo de seguir Medicina, ao que este aquiesceu com a condição de se reprovasse um ano iria para o Brasil trabalhar como os irmãos. Fez o curso geral do liceu em três anos e entrou na Faculdade de Medicina do Porto em 1931.

A veia política e jornalística foi uma constante na sua vida. Adolescente foi chefe de redacção do “Jornal da Maia” dirigido por António Macedo e redactor da revista “Gérmen “, da Associação dos Estudantes de Medicina do Porto. Em Lisboa, cidade onde terminou o curso, foi eleito director da revista “Medicina”, jornal de ciência, arte e humanismo e igualmente órgão da Associação de Estudantes. Já médico colaborou com os editores dos livros da colecção Gleba e Sírius.

Sócio nº 253 da Associação Profissional dos Estudantes de Medicina do Porto foi director (delegado de curso) do ano 1932 – 1933, onde participou na trágica e grandiosa greve em que morreu o estudante Emílio Branco e sofreu, pela primeira vez, a agressão policial.

O Porto e cidades circunvizinhas entraram em luto, durante uma semana, cobrindo as varandas e as janelas com panos pretos.

Por esta altura, fundaram-se as três lojas Maçónicas Académicas: Porto, Coimbra e Lisboa, patrocinadas por Basílio Lopes Pereira e iniciou uma amizade sólida com Cal Brandão, António Macedo, Veloso Pinho, António Costa entre outros. Foi referenciado pela imprensa reaccionária como adversário do regime.

Em Lisboa, colaborou no Bloco Académico Antifascista, como representante da Faculdade de Medicina, nomeadamente com Mário Dionísio, Manuel da Maia, Álvaro Cunhal e Casais Monteiro.

Mais tarde o Ministro da Educação propôs a sua expulsão, quando lhe faltava apenas uma cadeira para terminar o curso. Valeu-lhe a intervenção dos Prof. A. Celestino da Costa e Barbosa Soeiro que convenceram o Ministro a deixá-lo concluir os estudos e depois mandá-lo para o “exílio “.

Embora muitos dos seus companheiros das lojas maçónicas tenham entrado no Partido Comunista, sobretudo na altura da Guerra Civil de Espanha, como: Manuel João da Palma Carlos, Alexandre Babo, Orlando Juncal, entre outros, o meu pai nunca aderiu aos ideais da revolução soviética, perfilhando antes os ideais vindos da II Internacional. Fez parte da Acção Democrata e Social, do MUD, da Acção Socialista Portuguesa e mais tarde foi um dos fundadores do Partido Socialista.

Tendo concorrido duas vezes aos Hospitais Civis de Lisboa e sempre bem classificado, o que lhe permitia a admissão imediata na carreira hospitalar, foi no entanto excluído por decisão ministerial, que lhe impediu de entrar nos hospitais e na carreira universitária.

Estes métodos, eventualmente “mais suaves”, impostos pela PIDE, visavam fazer vergar os democratas, tendo muitos dos seus amigos sido forçados a exilarem-se nas colónias, em Africa. Um dos seus amigos, Dr. Barbeitos, com consultório na Cova da Piedade, por ter sido mandatário na campanha de Arlindo Vicente (candidato apoiado pelos comunistas) foi perseguido até ao 25 de Abril, chegando os agentes da PIDE a ameaçar os doentes que se dirigiam ao seu consultório.

Obrigado a fazer a sua formação de Pediatra, primeiro em Santa Marta e depois no Hospital Dona Estefânia, em regime de voluntariado, foi posteriormente convidado pelo professor de pediatria, Carlos Salazar de Sousa, para seu “assistente livre “.

Este grupo fundou mais tarde o Serviço de Pediatria do Hospital de Santa Maria e o meu Pai continuou sempre a ser impedido, pela Ditadura, a ingressar na função pública.

Segundo nos contava, uma vez o meu avô materno, que era piloto aviador e herói da primeira guerra mundial, desejou interceder por ele, junto de um militar fascista com influência no regímen, assegurando-lhe que o genro não era comunista e que era muito injusta a sua situação. O militar perguntou-lhe: “O teu genro é católico?” Ele respondeu: “Não”. “É monárquico”? “Também não”. “Então se é contra o regime e não é nem uma coisa nem outra diz-lhe que desista, não vale a pena continuar a concorrer aos Hospitais”.

Assim o fez. Desenvolveu toda a sua actividade como médico pediatra, no consultório, tendo sido o único meio de subsistência para si e para a sua família.

Uma das principais características do meu pai, além da sua escrupulosa honestidade, era a auto-disciplina.

A esse respeito, recordo um facto quase anedótico: - Durante anos, começava as suas consultas às 14 horas, quer caísse chuva, quer fizesse sol. Por essa hora, ele descia a Avenida António Augusto de Aguiar e passava por um café, com esplanada, frequentado por inúmeros funcionários públicos. Mais tarde contaram-nos que eles acertavam os relógios quando o meu pai aparecia….

10 comentários:

  1. Li com muito gosto, interesse e comoção.
    RN

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  2. tio!!

    Parabens e obrigado!!

    Não tenho mais palavras para expressar o meu sentimento...

    bjs X

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  3. a msg anterior e minha e nao do miguel!!XIKO

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  4. muitas saudades... um exemplo a seguir, agora percebo de onde vem o meu sentido de justiça social, amizade e sempre pronto a ajudar o próximo.

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  5. interessante e comovente, o testemunho é até ao momento a única fonte de informação de que disponho sobre Abílio Mendes

    simpatizei também com o blog, a que cheguei por indagar sobre Abílio Mendes, na sequência de informação da CMLisboa sobre a atribuição toponímica à rua onde moro

    fico na expectativa da homenagem a realizar no próximo dia 10 de Abril mas também, com antecipada gratidão, de mais informação sobre a vida, obra e personalidade do Dr. Abílio Mendes

    cordialmente,

    A.J.Marrachinho Soares

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  6. Em princípio a data da inauguração da rua está prevista para 22 de Maio. Quando tiver a certeza informo no blog.
    Obrigado pelo interesse manifestado no conhecimento da figura do meu Pai.

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  7. Finalmente a data certa da inauguração da rua é no dia 5 de Junho às 11 horas, estará um palanque à entrada da rua ( lado já construido)em seguida haverá uma sessão em memória do meu pai no auditório do Hospital dos Lusiadas

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  8. Muitos parabéns.
    É sempre muito agradável quando terceiros homenageiam os nossos pais e avós.
    Sou neta de Basilio Lopes Pereira.

    Maria da Conceição Pereira

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  9. Maria da Conceição
    Se ler este meu comentário aconselho-a a comprar o livro Revoltar para resistir A Maçonaria em Almada ( 1898 - 1937) que fala do percurso do seu AVÔ
    Editado pela Câmara Municipal de Almada ou contacte o Historiador António Ventura no departamento de História da Faculdade de Letras de Lisboa

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  10. Caro Dr. Jaime Mendes,
    por obra do acaso, ou talvez não, encontrei hoje esta entrada neste seu blogue e não podia deixar de prestar a minha homenagem a um grande médico e a quem por duas vezes devo a vida: o seu pai e saudoso Dr. Abílio Mendes.
    Ainda hoje, passados que estão quase 60 anos sobre a primeira consulta, a saudade e gratidão que tenho por esse grande Homem me emocionam.
    Todas as Homenagens que lhe possa prestar serão insuficientes para quem mais que me curar os males do Corpo muito me ajudou a ser o Homem que sou.
    Obrigado Dr. Abílio Mendes.
    Luís Filipe dos Santos Rocha

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